Por que o mundo mudou, mas o trabalho não?
- Renata Rivetti

- 7 de ago.
- 4 min de leitura
Mesmo com inteligência artificial transformando tudo ao nosso redor, seguimos presos a um modelo de trabalho do século passado — enquanto propostas como semana de quatro dias e anywhere office ainda lutam para ganhar espaço.

Charles Chaplin, em sua sátira “Tempos Modernos”, retratou o mundo desgastante do trabalho no século XX. Quase cem anos após esse episódio e após a Segunda Revolução Industrial, o mundo mudou completamente — mas ainda nos relacionamos com o trabalho da mesma forma desgastante e robótica, seguindo um modelo fabril em um mundo digital e tecnológico. Será que não está mais do que na hora de ressignificarmos o trabalho em nossas vidas, com tudo o que conseguimos realizar com a evolução da internet e da inteligência artificial?
Hoje, em países desenvolvidos, estima-se que 30% a 50% dos empregos já envolvam atividades de conhecimento — ou seja, tarefas que exigem análise, criatividade, tomada de decisão e resolução de problemas, em vez de repetição ou força física. Bill Gates tem dito que, com a evolução da IA, o trabalho de conhecimento poderia ser realizado em apenas dois dias da semana. Afinal, agora é possível reduzir drasticamente o trabalho burocrático, operacional e repetitivo. Finalmente, no trabalho de conhecimento, poderíamos focar nossas habilidades humanas no estratégico, analítico e criativo.
A neurociência mostra que não somos multitarefas como imaginamos
Porém, quando olhamos ao redor, o mundo continua igual, com profissionais atuando da mesma forma, correndo o tempo todo, enquanto disponibilidade e presença seguem sendo mais valorizadas do que entregas e resultados reais. Em vez de nos abrirmos para mudanças e testarmos novos modelos mais flexíveis — como a semana de quatro dias, o chronoworking (modelo que respeita os diferentes picos de produtividade ao longo do dia ou da semana) e o anywhere office (modelo em que se pode trabalhar de qualquer lugar) — seguimos presos a debates sobre voltar ao escritório, com a desculpa de que isso preservaria a cultura ou a eficiência. Porém, esse modelo ultrapassado não traz mais eficiência, produtividade, nem melhora a cultura, se não for repensado com intenção. Não deveria ser sobre voltar ao passado para “melhorar”, mas sim sobre construir novos modelos, novas formas de nos relacionarmos com o trabalho e novos rituais e práticas.
E, nessa tentativa de resgate do passado, muito se fala que a Gen Z não quer trabalhar. Mas a verdade é que, para uma geração que entrou no mercado de trabalho em meio à pandemia, ficou claro que é possível trabalhar de qualquer lugar — e que talvez, se formos mais eficientes, não precisemos ficar oito horas por dia em frente ao computador só porque “sempre foi assim”. Claro que isso não se resume à geração Z. Esse inconformismo com o trabalho ocupando grande parte da vida de forma pouco saudável deveria existir em todos nós que percebemos as mudanças do mundo atual e sabemos que ele poderia ser diferente — e melhor — para nós, para as empresas e para a sociedade.
Ainda vemos CEOs dizendo que valorizam o profissional workaholic, que trabalha mais de 50 horas por semana, com empresas premiando esse tipo de comportamento. Mas hoje, a neurociência mostra que nosso cérebro não sustenta longas horas de foco, que as pausas são essenciais para a recuperação do estresse diário e que não somos multitarefas como imaginamos.
Essa cultura do hustle, que nos faz sentir culpa quando não estamos disponíveis e conectados 24 horas por dia, só tem nos adoecido — e não tem trazido nem produtividade. Porque talvez estejamos vivendo um grande teatro no mundo corporativo. Na prática, não medimos produtividade, performance ou resultados reais. Valorizamos horas trabalhadas, disponibilidade e presença. E, com isso, ganha quem “joga o jogo” — um jogo que, no final, valoriza sempre os mesmos perfis e exclui da competição os grupos minorizados, pessoas sem rede de apoio ou simplesmente quem busca algo além do trabalho em suas vidas.
Isso não significa que devamos parar de trabalhar, adotar o task masking (fingir produtividade) ou o quiet quitting (fazer apenas o mínimo necessário). O trabalho pode e deve ser fonte de realização e significado em nossas vidas. E, se vamos passar mais de 100 mil horas trabalhando (caso o mundo não mude), ele não pode ser apenas um fardo ou sacrifício. Para isso, é preciso redesenhar nossa forma de atuar — e as empresas não podem continuar sendo mais um fator de agressão à saúde mental.
É fundamental focar nas habilidades individuais, empoderar as pessoas, dar autonomia
Precisamos construir ambientes mais flexíveis, que permitam que as pessoas realmente trabalhem com foco e presença, e não apenas cumpram uma carga horária. Precisamos fomentar melhores relações, ambientes com segurança psicológica, onde seja possível ser autêntico, vulnerável, sem medo de punições, julgamentos ou humilhações. É fundamental focar nas habilidades individuais, empoderar as pessoas, dar autonomia — e não apenas seguir um “job description” que nos torne apáticos e desmotivados. Por fim, acredito que devemos usar o potencial humano para transformar a IA em uma parceira estratégica de trabalho — ela pode, sim, melhorar nossas vidas.
Entretanto, para que tudo isso aconteça, precisamos resgatar nossa humanidade, cultivar conexões reais e profundas, e reaprender a sustentar atenção plena, sem distrações constantes. Não estamos preparados para o futuro do trabalho e para modelos mais flexíveis. Ainda não sabemos o que faremos com o tempo que a IA nos devolverá. Nem a CLT está preparada para isso — tampouco nossa mentalidade, que segue obsoleta.
Mas o mundo segue em constante transformação, e não será ignorando isso ou esperando condições ideais que avançaremos. Elas não virão. O futuro pode ser distópico, sim, mas cada um de nós pode se responsabilizar, individualmente, pela construção de um mundo melhor: mais humano, mais empático e mais justo. Os desafios virão, mas podemos fazer a nossa parte.



