Veja o que se ganha e o que se perde nos modelos de trabalho erguidos após a pandemia de Covid-19
Na década de 90, o chamado teletrabalho era apenas uma ideia, mesmo com o avanço dos computadores entre as empresas e até em muitas casas. A internet avançava, mas ninguém se arriscava de fato a adotar o modelo, até que uma pandemia apareceu no caminho e quase todo o trabalho se tornou remoto.
Chegou-se até a cogitar, no final de 2020, que haveria um “novo normal” onde muitas companhias entregariam seus escritórios, deixando todo mundo trabalhando de casa. Ledo engano. Três anos depois, com a vida voltando aos trilhos, muitas empresas querem mesmo é a volta do “velho normal”.
Neste 2024, muitas companhias já anunciaram a volta ao presencial, nem que seja por duas a três vezes por semana. Até empresas de tecnologia, que foram as mais rápidas a se adaptarem ao trabalho remoto, querem o presencial de volta. Mas esse retorno deve enfrentar alguma resistência, na opinião de especialistas ouvidos pelo InfoMoney.
No entanto, eles são unânimes em dizer que será preciso ter muita flexibilidade e negociação para criação de um novo modelo de trabalho, sob pena de abrir mão de alguns talentos importantes, que não querem perder a qualidade de vida nem a proximidade com a família.
“As empresas se beneficiaram muito com o home office, especialmente com a contratação de talentos onde quer que eles estivessem. Agora não podem simplesmente voltar atrás”, diz Maria Eduarda Silveira, headhunter da consultoria de recrutamento Bold HRO. Por isso, em sua visão, o aspecto flexibilidade precisa estar no radar dos RHs.
“A gestão das empresas precisa avaliar [as novas modalidades de trabalho] antes de simplesmente dizer que vai voltar tudo como era antes”, diz Maria Eduarda. “Ao optar por voltar 100%, a empresa pode colocar em risco também a qualidade do seu quadro de funcionários, tendo de buscar pessoas que topam o presencial”.
Mais complicado será negociar a permanência de um bom funcionário que se mudou de cidade. “Isso exigirá além de flexibilidade, uma transformação da liderança. Mas é importante frisar que não é ‘tudo para mim nada para eles’. E isso vale também para o funcionário. É preciso equilíbrio porque há ganhos também com trabalho no escritório”, frisa Maria Eduarda.
Para Camila Magalhães, psiquiatra e cofundadora da Caliandra Saúde Mental, não há uma regra e sim uma soma de fatores. “Sabemos que, no remoto total, a cultura da empresa estava se perdendo e tem gente que trabalha melhor em equipe do que sozinha. Mas o contrário também é verdade e, por isso, não há uma solução pronta e sim construída”, alerta a especialista em saúde mental.
A ideia de construção conjunta também é defendida por Bruno Carone, CEO do Férias & Co. A empresa de benefício de viagens foi criada em 2020 durante a pandemia para oferecer novas possibilidades de locais de trabalho para trabalhadores. “70% dos nossos clientes trabalham no modelo híbrido, deixando os colaboradores escolherem de onde querem trabalhar. E incentivam até viajar e trabalhar de um hotel, enquanto a família aproveita piscina”, acrescenta.
Para o consultor, muitos empregados não querem mais o presencial total e cita casos em que a pessoa aceitou ganhar menos para poder trabalhar de onde se sente melhor. “Hoje sabemos que a pessoa não é remunerada pelas horas trabalhadas e sim pelo trabalho que entrega. Se quiser trabalhar da praia pode, desde que seus resultados estejam em dia”, diz Carone.
É natural que haja insegurança nas empresas e que muitas estejam pensando na volta ao presencial, mas isso seja o maior desafio no pós-Covid, segundo a consultora Renata Rivetti. Fundadora da Reconnect Hapiness at Work, parceira da comunidade internacional 4 Day Week para implementação no Brasil da semana de quatro dias de trabalho, Renata acredita que o modelo gerencial precisa ser revisto com foco na produtividade. “Tem alguns dados levantados pela Universidade de Harvard que mostram que o trabalho 100% remoto não é mesmo tão produtivo, mas o mesmo estudo indica também que o 100% presencial também não é”, pondera Rivetti.
Novas modalidades
Muitas empresas vêm testando novas modalidades. O Google, por exemplo, trabalha sob um modelo híbrido desde 2021. Sundar Pichai, CEO da big tech, anunciou em maio daquele ano que a companhia adotaria globalmente o modelo de uma semana de trabalho híbrida, em que a maioria passaria aproximadamente três dias no escritório e dois dias onde quisesse.
Segundo o Google, o tempo no escritório é focado na colaboração, e as áreas decidiram em quais dias as equipes se reuniriam presencialmente. Entretanto, a empresa lembra que há funções que precisam estar no local mais de três dias por semana devido à especificidade do trabalho.
Por outro lado, existem exemplos mais radicais anti-home office, como o do empresário Elon Musk. O bilionário chegou a chamar o trabalho remoto de “moralmente errado” e decretou que todos seus funcionários voltassem aos escritórios.
O Itaú Unibanco anunciou, no segundo semestre de 2023, nova diretriz que estabelece um mínimo de dias presenciais para as suas equipes e que será implementada em duas fases: quatro dias por mês desde setembro e oito dias por mês a partir de fevereiro de 2024. “O objetivo é promover um ambiente de trabalho produtivo, flexível e acolhedor, aproveitando o melhor dos dois mundos: a praticidade, a autonomia e o foco do home office aliados às oportunidades de interação com o time no presencial”, disse Tatyana Montenegro, diretora de Recursos Humanos do Itaú. Segundo ela, a mudança também fortalecerá a cultura, a integração de novos colaboradores e a colaboração entre os times.
Dos 85 mil funcionários da instituição financeira, 42% atuam o tempo todo no presencial, com atendimento ao público ou funções que dependem de apoio físico dos escritórios ou agências. Os outros 58% estão no modelo híbrido, seja com uma escala pré-definida ou com a obrigação de comparecer um mínimo de dias aos escritórios. Para abrigar todas as equipes, o banco inaugurou recentemente a sexta torre do Centro Empresarial, na zona Sul de São Paulo.
Mercado imobiliário
As mudanças nas empresas já começam a se refletir também no mercado imobiliário. De acordo com consultorias imobiliárias, a ocupação dos prédios de escritórios deve aumentar em 2024, de acordo com as pesquisas mais recentes da consultoria imobiliária JLL. O saldo entre áreas alugadas e devolvidas (a chamada absorção líquida, no jargão do mercado) foi de 51 mil m² no terceiro trimestre de 2023. O número equivale a sete campos de futebol e representa o maior nível de atividade desde a chegada da pandemia, no início de 2020.
No acumulado do ano, a absorção líquida foi de 64 mil m². Isso mostra que o ano começou com poucos negócios, refletindo as preocupações de empresários com a troca de governo, mas passou por um reaquecimento nos meses mais recentes. A maior ocupação dos escritórios, no entanto, está sendo observada principalmente por empresas do setor financeiro e de serviços. Já no segmento de tecnologia, o home office continua sendo o mais popular. Segundo a JLL, o setor financeiro respondeu por 42% da área alugada nos edifícios paulistanos no terceiro trimestre, como mostrou reportagem do jornal “O Estado de S. Paulo”.
Segundo a consultoria imobiliária CBRE, 90% dos prédios de escritórios tinham fluxo de pessoas acima de 50% da capacidade do local em 2023, enquanto em 2022 eram 69% dos imóveis nesta situação. “Esse aumento recente na ocupação dos escritórios é bastante significativo e tende a continuar porque existe uma demanda reprimida por espaço”, afirmou o vice-presidente da CBRE, Adriano Sartori.
Ele apontou que há casos de empresas optando por manter o home office porque não têm onde acomodar todos os funcionários que foram contratados mais recentemente. Na outra ponta estão as companhias que pretendem reduzir o home office porque sentiram perda de produtividade ou de engajamento com os funcionários remotos. “A grande maioria dos CEOs com quem conversamos diz que prefere o expediente presencial full”, disse Sartori.
A opinião é compartilhada pelo sócio-diretor da consultoria Binswanger, Marcio Kawashima. “Ao longo do segundo semestre de 2023, a demanda por escritórios aumentou porque os funcionários estão passando menos dias em casa. A frequência no trabalho presencial tem aumentado”, disse. Isso não quer dizer que o trabalho híbrido vai acabar, ponderou Kawashima, mas a previsão é que os dias de expediente em casa serão reduzidos. “São muitos os casos de empresas que avaliam ter perdido capacidade de interação com o home office e que isso tem representado menos produtividade e inovação. O modelo híbrido vai permanecer, mas em modelo reduzido, de um ou dois dias na semana”, estimou.