Enquanto Brasil dá início a testes da semana de trabalho mais curta, especialistas discutem se tecnologia será capaz de transformar cultura
Em janeiro de 2024, mais de 20 empresas brasileiras vão começar a testar a semana de trabalho de quatro dias, mudança que já trouxe resultados positivos para a produtividade e o bem-estar dos funcionários em outros países. “O propósito da vida não é apenas trabalhar”, disse o bilionário Bill Gates em entrevista ao podcast americano What Now, em 21 de novembro.
Antes mesmo de essa tendência se consolidar ao redor do mundo, o fundador da Microsoft defendeu uma semana de trabalho ainda mais curta, de três dias. “Se você conseguir uma sociedade em que só temos que trabalhar três dias por semana ou algo assim, provavelmente está tudo bem se as máquinas puderem fazer as coisas e não precisarmos trabalhar tanto”, disse Gates quando questionado sobre como a inteligência artificial poderia ameaçar os empregos – e impulsionar a criação de outros.
O CEO do JP Morgan também já havia defendido essa ideia. “Seus filhos vão viver até os 100 anos e não vão ter câncer devido à tecnologia. E eles provavelmente vão trabalhar três dias e meio na semana”, disse Jamie Dimon em entrevista à Bloomberg em outubro.
O que dizem os CEOs
Essas declarações surgem em um momento em que se vê uma tendência do mercado no modelo presencial de trabalho. Empresas como Apple, Disney e Zoom fizeram esse movimento. O CEO do JPMorgan é contra o trabalho totalmente remoto, e já chegou a dizer que esse regime “não funciona para a cultura”. “Muitos líderes estão retomando o retorno aos escritórios por várias questões relacionadas à cultura organizacional e à mentalidade. E a tecnologia não muda a mentalidade”, afirma Sylvia Hartmann, especialista em modelos de trabalho.
Funcionários com modelos de trabalho flexíveis entrevistados pelo Future Forum, consórcio do Slack focado no futuro do trabalho, tinham 57% mais chances de dizer que a cultura da empresa melhorou nos últimos dois anos em comparação com pessoas que trabalham 100% presencialmente. Empresas com políticas de trabalho flexíveis também faturam mais, como mostra uma análise de 554 empresas públicas americanas feita pela Scoop, uma startup de gestão de trabalho híbrido, em parceria com o BCG.
Na Vockan Consulting, empresa de tecnologia voltada para a indústria, a redução da jornada de trabalho para quatro dias resultou em uma produtividade 41% acima da média. A empresa começou o plano piloto do novo regime de trabalho em novembro de 2022 e finalizou o período de testes com 70% dos seus 100 funcionários em março deste ano. Hoje, a Vockan continua funcionando em jornada reduzida e em sistema híbrido – 3 dias de trabalho home office e 1 dia presencial. “O mais importante é mapear a empresa e o segmento e entender o dia a dia do colaborador e como redesenhar a sua rotina de trabalho”, diz Fabrício Oliveira, CEO da Vockan.
Maior retenção e atração de talentos, além de funcionários mais felizes e com melhor saúde mental foram alguns dos resultados observados pela Vockan, que tem sede em São Paulo. “O número de colaboradores aumentou 62% desde o início do projeto e nossas pesquisas anônimas de clima mostraram que 60% dos colaboradores estão muito felizes e 40% estão felizes com o trabalho”, diz Oliveira.
Diferentemente do que mostravam as pesquisas, a semana de quatro dias não funcionou na Marfin, empresa de IA e marketing digital. Ivan Cordeiro, fundador e CEO da Marfin, foi um dos pioneiros do modelo no Brasil, mas viu a produtividade da sua empresa cair. Implementou a ideia na companhia entre 2021 e 2022, mas se deparou com alguns problemas. “Principalmente devido à falta de sincronia com nossos clientes e parceiros e à ausência de ferramentas tecnológicas avançadas”, diz ele, que avalia que faltou maturidade da gestão e da equipe.
Volta à semana de quatro dias
ordeiro cancelou a semana mais curta no início deste ano, mas deve retomar o regime quando a empresa estiver mais preparada. Isso porque a recente declaração de Bill Gates ressoa com a sua visão de futuro do trabalho. “A transição para semanas de trabalho mais curtas parece inevitável, mas requer equilíbrio entre tecnologia, preparação cultural e desenvolvimento de habilidades profissionais”, diz ele.
Pesquisas mostram que a tecnologia já está transformando o ambiente de trabalho, assumindo tarefas repetitivas e trazendo ganhos em produtividade, mas é apenas um meio para a mudança. “O seu potencial depende do uso do ser humano”, diz Hartmann.
Um estudo do MIT mostra que o uso de chatbots de IA generativa pode acelerar a produtividade em 40% e aumentar a qualidade das entregas em 18%. E, segundo uma pesquisa da consultoria PwC e do Page Group, quase 70% dos profissionais acreditam que são mais produtivos trabalhando de forma remota. “Muitos dirigentes pensam que vale mais a pena investir milhões em escritórios e incentivos para levar as pessoas de volta do que em tecnologia e capacitação para que as pessoas aprendam a trabalhar de forma remota”, afirma Hartmann.
Para implementar a jornada de trabalho de quatro dias, a Vockan Consulting usou tecnologias para integrar os funcionários no regime híbrido e seu CEO reconhece o potencial da inteligência artificial para diminuir a carga de trabalho. “Futuramente, a tendência é o ser humano trabalhar cada vez menos e as máquinas assumirem um papel cada vez maior, mas isso não está relacionado com a perda dos empregos para as máquinas”, diz Oliveira.
Essa não é a primeira vez que a tecnologia movimenta as estruturas da sociedade e do trabalho. “A gente só pode falar de trabalho remoto, nomadismo e anywhere office hoje porque há décadas estamos vendo uma evolução da tecnologia que permitiu isso”, diz Hartmann.
Mas essa transformação não abrange toda a força de trabalho. “Quando a gente pensa na realidade econômica, 75% dos profissionais não têm acesso a trabalhos que podem ser feitos de forma remota, e provavelmente em três dias também não”, afirma Hartmann.
As especialistas citam as principais práticas para criar um modelo de trabalho flexível e testar a semana de trabalho de 4 dias:
reduzir o número de reuniões;
fazer reuniões mais curtas e com menos participantes;
usar a tecnologia para trabalhar de forma assíncrona;
fortalecer processos de comunicação;
planejar a agenda de trabalho;
colocar momentos para hiperfoco na agenda;
automatizar processos.
O teste da semana de quatro dias no Brasil
Os resultados da redução da jornada de trabalho semanal para quatro dias – ou 32 horas por semana –, refletem aumento na produtividade, no bem-estar e principalmente nos lucros das companhias participantes. “Estudos também mostram que a experiência da semana de 4 dias reduz emissões de carbono e contribui para a equidade de gênero”, diz Renata Rivetti, CEO da Reconnect Happiness at Work, consultoria que está ajudando a implementar um piloto do o projeto no Brasil. “No final, é um projeto de produtividade.”
Resultados da semana de 4 dias, segundo estudo da 4 Day Week Global:
redução no esgotamento (68%)
atração de talentos (63%)
aumento na capacidade para o trabalho (54%)
diminuição nas demissões de funcionários (42%)
aumento da receita em relação ao ano anterior (36%)
Produtividade
Fazer essa mudança de cultura passa, necessariamente, por ressignificar o conceito de produtividade. Associá-la ao número de horas passadas no escritório parece fazer menos sentido atualmente. “As empresas precisam privilegiar a produtividade verdadeira, que não está associada a tempo de trabalho e disponibilidade, mas sim a entregas com qualidade”, diz Hartmann, criticando a cultura “always on”. “Se essa mentalidade impede que o trabalho remoto funcione, com certeza também impedirá que o trabalho de quatro dias avance.”
Mesmo depois da pandemia, em que se esperava um “novo normal” também em relação ao trabalho e com mais flexibilidade, empresas mantiveram a cultura de excesso de reuniões, por exemplo. As pessoas gastam mais de 85% de seu tempo em reuniões, segundo uma pesquisa do MIT Sloan, e a maioria delas é considerada improdutiva. Os custos da “Zoom fatigue”, ou a fadiga do Zoom, não são apenas emocionais, mas financeiros. “Existe uma sobrecarga que tem levado muito mais à exaustão do que a bons resultados”, diz Rivetti.
A Inspira, empresa de soluções jurídicas participante do teste da 4 Day Work Week, vê como possível a diminuição da carga de trabalho dos profissionais com uso de tecnologias. “Advogados já gastam 10 vezes menos tempo para fazer a leitura de um caso, por exemplo”, diz Rafael Grimaldi, cofundador e CEO da empresa. “Se você conseguir levar essa eficiência para cada uma das atividades dos profissionais, a gente consegue diminuir cada vez mais a carga de trabalho humano na semana.”
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